sábado, 2 de outubro de 2010

Trabalho apresentado no II Simpósio Internacional Diálogos na Contemporaneidade: Tempos Líquidos e espaços Fluídos. Em Lajeado - UNIVATES - set.2010.


CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: UMA ALTERNATIVA PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO
Luana Iensen Gonçalves[1]
Marta Lia Genro Appel[2]

RESUMO

Este artigo visa socializar os resultados do projeto O incentivo à leitura através de oficinas literárias: Royale/2010, realizado de março a julho de 2010, na escola de dança e integração social Royale, na cidade de Santa Maria - RS. Este trabalho pontuou a possibilidade de apresentar a leitura a crianças de três a sete anos através da contação de histórias, explorando seus sentidos (visão, audição, tato, olfato) e motricidade. Teve-se como objetivo principal desenvolver o gosto e o interesse pela leitura, além de, incentivar a leitura de diversos gêneros textuais e promover a interação social dessas crianças através do hábito da leitura. Justifica-se, então, o presente trabalho pela necessidade de formar leitores desde a infância, para que se tornem cidadão críticos na sociedade em que vivem. Como resultados desse primeiro semestre têm-se o comprometimento das meninas com as atividades, o interesse delas pela leitura e a inicialização à aquisição do léxico.

PALAVRAS-CHAVE: leitura, letramento literário, contação de histórias.

ABSTRACT
This article aims to socialize the results of the project Reading incentive through literary workshops: Royale/2010, conducted from March to July 2010, at the Royale dance and social integration school, in Santa Maria - RS. This work discussed the possibility of presenting reading to children from three to seven years old through storytelling, exploring their senses (sight, hearing, touch, smell) and movement. The main goal was to develop the taste and interest in reading, besides motivating the reading of various textual genre and promoting social interaction of these children through this habit. This work becomes relevant for the necessity of educating readers since childhood, so they may become citizens aware of the society in which they live. The results of the first semester were the commitment of the girls with the activities, their interest in reading and the beginning acquisition of lexicon.

KEYWORDS: reading, literary literacy, storytelling.



INTRODUÇÃO

O projeto O incentivo à leitura através de oficinas literárias: Royale/2010, será realizado durante o ano letivo de 2010, neste espaço será descrito as atividades realizadas e seus resultados de março a julho de 2010. O presente projeto é um trabalho voluntário das acadêmicas do curso de letras da UNIFRA na Escola de dança e integração social Royale, que visa apresentar a leitura a meninas de 03 a 07 anos. Partindo da ideia de que a leitura é um processo que acontece sem o contato direto entre receptor/leitor e o emissor/autor, um texto pode, portanto, permitir diversas leituras. Desta forma, um mesmo texto pode ter diferentes interpretações por leitores diferentes, ou por um mesmo leitor em diferentes momentos. Percebe-se, então, que ao contar as histórias apresenta-se as crianças o que escritor quis passar e o que acontece de fato no contexto que elas estão inseridas. Concretizando assim, o objetivo principal que é desenvolver o gosto e interesse pela leitura, além de, incentivar a leitura de diversos tipos gêneros textuais e promover a interação social dessas crianças através do hábito da leitura. Justifica-se o presente trabalho pela necessidade de formar leitores desde a infância, para que se tornem cidadão críticos na sociedade em que vivem. De acordo com Martins (1986), os primeiros contatos com o mundo são também os primeiros passos para aprendemos a ler. A autora enfatiza que “quando começamos a estabelecer relações entre as experiências e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam – aí então estamos procedendo leituras, as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa” (p.17). Dessa forma, entende-se a primeira leitura dessas crianças, o que Martins (1986) denomina de leitura sensorial, ou seja, aquela que percebemos através dos nossos sentidos (visão, audição, olfato, paladar) presente desde muito cedo e que nos acompanha em toda a vida. É como um jogo de imagens e cores, sons pelos quais buscamos o que nos agrada e descobrimos os sentidos. Conhecemos a nós mesmos e as nossas preferências. É com este conceito que se iniciou os encontros com as crianças. Tem-se assim, como metodologia de trabalho, encontros semanais em que conta-se histórias literárias a essas crianças. Nesta contação, valorizam-se os sentidos das crianças, através da entonação da voz no ato de narrar as histórias, dando-se ênfase nas partes necessárias; mostrando-lhe imagens referentes aquilo que está sendo narrado; respondendo as perguntas; explicando o que é real e o que é ficcional.

REFERENCIAL TEÓRICO

De acordo com Martins (1986), os primeiros contatos com o mundo são também os primeiros passos para aprendemos a ler. Que estudos sobre a linguagem revelam que aprendemos além dos professores; que possuímos aptidões para fazermos algumas coisas sozinhas, e para outras, necessitamos de alguma orientação. Ela enfatiza que “quando começamos a estabelecer relações entre as experiências e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam – aí então estamos realizando leituras, as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa” (MARTINS, 1986, p.17).
A autora propõe então, a pensar como o leitor lê, e percebe três níveis básicos de leituras: o sensorial, o emocional e o racional. Cada um destes corresponde a maneira como o leitor aproxima-se do texto. Segundo Martins os três níveis são inter-relacionados, às vezes até simultâneos, já que a leitura é dinâmica e circunstanciada. Ela esclarece também, que podemos encontrar diversos conceitos sobre os níveis de leitura, conforme cada estudioso, que estes são os conceitos que ela defende.
Nota-se que neste trabalho desenvolve-se nas crianças a exploração da leitura sensorial. De modo que exploram o formato do livro, as cores, o tamanho das palavras, o cheiro que o livro tem, para assim iniciarem seu processo de construção de conhecimentos. Segundo Martins (1986) a leitura sensorial é aquela que percebemos através dos nossos sentidos (visão, audição, olfato, paladar) presente desde muito cedo e que nos acompanha em toda a vida. É como um jogo de imagens e cores, sons pelos quais buscamos o que nos agrada e descobrimos os sentidos. Conhecemos a nós mesmos e as nossas preferências.
A autora afirma que antes de ser texto o livro é um objeto. E que adultos e principalmente crianças o descobrem pela cor, formato, cheiro, textura. Essa leitura sensorial é que vai revelar a curiosidade de aprendizagem.
Nota-se que as meninas ainda não possuem o pleno domínio do código-verbal, mas a partir da leitura sensorial elas conseguem fazer relações concretas dos símbolos/desenhos do livro com suas vivências do cotidiano. Dessa forma, segundo Palo e Oliveira (2003) afirmam que juntamente a pedagogia o aprendizado vai acontecendo em “fases sequenciais e evolutivas, prevendo uma aprendizagem gradual, linear e contínua” (p.06). As autoras explicam que a função utilitário-pedagógica implica além de ensinar o que se sabe às crianças é estar também apto para se aprender constantemente. Esta função tem duas relações comunicativas: a leitor-obra, que terá a intervenção do professor e a relação livro-criança, que possui uma cadeia de mediadores, como os pais, a escola, a biblioteca e as editoras.
Percebe-se então, que nessa fase da infância, as duas relações comunicativas são importantes para a formação de um leitor ativo adulto. Além do espaço que a escola oferece para a leitura, os pais também, devem continuar esse incentivo em casa.

A construção de conhecimentos
Kleiman (1997), aponta que a compreensão de um texto escrito é um processo pelo qual utilizamos o conhecimento prévio, utilizamos na leitura o conhecimento que já adquirimos ao longo da vida.
Dessa forma, nos encontros realizados, além do ensino da leitura e da alfabetização, começou-se a construir com as meninas seus conhecimentos de mundo. Esta “construção” iniciou-se a partir dos diálogos e relatos após as contações de histórias, das meninas, que relacionavam seus conhecimentos aos das histórias, além das intervenções realizadas “por mim”. Kleiman (1997), ainda explica que outros vários níveis de conhecimento farão parte do processo de leitura: o conhecimento linguístico, o conhecimento textual e o conhecimento de mundo.
Segundo a autora o conhecimento linguístico é aquele implícito, o qual faz com que falemos português como falantes nativos. Este conhecimento é bem abrangente, desde o conhecimento de como pronunciar o português, seu vocabulário e regras, até sobre o uso da língua. Considerando-se a idade das meninas (de 03 a 07 anos), explorou-se nos encontros, sobre o conhecimento linguístico, a pronúncia das palavras e principalmente a aquisição de léxico.
Assim, o conhecimento linguístico, conforme Kleiman (1997) representa um papel central no processamento do texto. “Entende-se por processamento aquela atividade pela qual as palavras, unidades discretas, distintas, são agrupadas em unidades ou fatias maiores, também significativas, chamadas constituintes da frase” (p.14,15). Conforme percebemos as palavras, nossa mente é ativada e constroi significados; e a atividade inicial é o agrupamento em frases que tem como base o conhecimento gramatical de constituintes. É com este constituinte que poderemos identificar as categorias (por exemplo, o sintagma verbal) e as funções dessas frases (sujeito, predicado). Este conhecimento num primeiro momento, não foi tão explorado nos encontros, uma vez que as meninas ainda não possuem o domínio do código verbal.
Outro conjunto de noções e conceitos sobre o texto é o que a autora chama de conhecimento textual, este também faz parte do conhecimento prévio e tem grande importância para a compreensão de textos. A autora utiliza de um exemplo com um trecho retirado do jornal para explicar o conhecimento textual. No exemplo é possível perceber diferentes tipos de texto e de formas de discurso, este conhecimento constitui o que ela chama de conhecimento textual.
Já o conhecimento de mundo ou enciclopédico constiui-se naquilo que adquirimos formalmente ou informalmente. Durante o ato de leitura o conhecimento de mundo deve ser ativado em nossa mente para haver uma maior compreensão da leitura. Este foi o conhecimento mais explorado nos encontros, uma vez que, atingia-se o objetivo de fazer com que as meninas interagissem socialmente, tendo sempre um espaço de dialogar.
Para o aprendizado desses conhecimentos, foi essencial este espaço interativo para o diálogo e relato das meninas, referente às histórias e suas vivências pessoais. Conforme Kleiman (2002), de fato o processo de ensino-aprendizagem só ocorre, com um espaço interativo no qual todas as vozes (professor e alunos) tenham direito de dialogar, interrogar e assim, interagir.
Segundo Kleiman (2002), para que o aprendizado sequencial e evolutivo comentado por Palo e Oliveira (2003) ocorra, é necessário que os professores definam atividades cada vez mais complexas, porém com resolução. Assim, “aos poucos, o professor vai retirando os suportes, e a criança redefine tarefas para si própria, constituindo-se aí a aprendizagem de estratégias de leitura” (KLEIMAN, 2002, p.09).
A autora afirma, também, que

a compreensão, nessas etapas iniciais, não se dá necessariamente durante o ato de ler da criança, mas durante a realização da tarefa, na interação com o professor, ao propor estas atividades que criam condições para o leitor em formação retomar o texto e, na retomada, compreendê-lo (KLEIMAN, 2002, p.09).

Dessa forma, mediante a esse processo de tarefas gradativamente mais complexas e independentes, é que se vai conseguir formar a criança em um leitor, ou seja, ela estará construindo seu próprio conhecimento a respeito do texto e da leitura.
Confirmaram-se nos encontros as palavras de Kleiman (2002), que afirma que a aprendizagem é construída na interação de sujeitos cooperativos que possuem objetivos comuns. Isto revelou nos encontros que é na prática comunicativa em pequenos grupos que se vai criar o contexto para que a criança que não compreendeu o texto, o entenda. Esta comunicação aconteceu através dos diálogos durante e depois das contações de histórias, espaço que era reservado para as crianças re-contarem a história através dos desenhos e de suas compreensões, envolvendo aspectos do seu cotidiano; para os questionamentos que surgiam.
A partir dessas conversas e questionamentos, utilizava-se a leitura como um processo de ensino tanto da leitura como do léxico, introduzindo letras, palavras, e até algumas frases para as meninas mais velhas. Pois,

a leitura é tanto o ponto de partida para o ensino de vocabulário, pois o texto fornece as expressões-alvo do ensino, como ponto de chegada, pois a atividade modelada, que consiste na inferência lexical das expressões.
(...) O ensino de vocabulário não é equivalente ao ensino de leitura propriamente dito (possível só mediante a leitura), uma vez que essa atividade compreende muito mais do que a soma do ensino de estratégias e habilidades, mas a inferência em geral, e a inferência do léxico especificamente, é um dos processos cognitivos envolvidos na compreensão, e portanto, faz parte da leitura. (KLEIMAN, 2002, p.67).

Aproveitando-se dessa experiência de leitura, para inferir significados às palavras novas, a partir do contexto em que esta está inserida. Segundo Kleiman (2002), este é o meio mais eficiente para aprender o léxico, o uso do dicionário deve ser a última alternativa, pois com o texto, a palavra ganha significados para além do que o dicionário traz. Isto revela que a compreensão não depende de uma palavra isolada, mas de outras abordagens mais adequadas para a aquisição do vocabulário, ou seja, a inferência lexical, que enfatiza “o refinamento gradual que o significado de uma palavra vai adquirindo, à medida que novos encontros, em novos contextos, acontecem” (KLEIMAN, 2002, p.69).

Letramento literário: uma alternativa
Zilberman (2009) faz um breve retrospecto da história da humanidade juntamente à da escrita/leitura e explica que a partir do século XVIII com a consolidação de um público leitor ativo, a escola então percebe a real importância da leitura “ocupar o primeiro plano, em detrimento de outras modalidades de percepção e representação da realidade, vindo funcionar como a porta de entrada do jovem ao universo do conhecimento” (ZILBERMAN, 2009, p.22). Isto porque, segundo a autora, leitura e escrita foram relevantes como meio necessário para o funcionamento da sociedade.
Contudo, a autora explica que até os dias de hoje, há muitas crises de leitura nas escolas do Brasil, estas, relacionadas a diversos problemas sociais, começando pela administração da educação. Zilberman (2009) explica que a alfabetização e, sequencialmente

o letramento associam-se ao ato de ler e, sendo esse resultado o produto mais importante da ação da escola nos primeiros anos de formação de uma pessoa, pode representar também a condição de rompimento não apenas do sujeito, mas também da instituição que propicia a aquisição dessa prática (ZILBERMAN, 2009, p. 28).

Na intenção que este rompimento não ocorra, ou diminua gradativamente, a autora sugere então, a leitura da literatura como uma alternativa possível para esse caso, pois “os suportes da literatura são flexíveis e mutáveis, adaptando-se às novas condições” (ZILBERMAN, 2009, p.29).
Engajando-se nessa perspectiva, buscou-se nos encontros com as meninas, o incentivo e o gosto da leitura através das contações histórias, tendo-se consequentemente a formação do hábito de leitura nessas crianças. Para que encontros como estes, que tiveram um espaço interativo, cheguem ao âmbito escolar, Zilberman (2009) afirma que a escola deve mudar seu ensino mecânico, entendendo o significado da leitura “como um procedimento de apropriação da realidade, bem como o sentido do objeto por meio do qual ela se concretiza: a obra literária” (p.30).
A partir da interatividade, a leitura se configura como uma ligação privilegiada com o real, pois engloba o convívio com a linguagem e com o exercício de interpretação, sociabilizando as meninas com a história narrada e suas realidades/vivências.
Dessa forma, utilizando da literatura como uma alternativa de letramento, que além de alfabetizar as crianças, as incentiva ao hábito da leitura. Pois nada mais interessante do que aprender palavras e significações a partir de um determinado contexto, no lugar de letras e sílabas soltas no quadro. Entende-se então, atualmente, conforme definição de Paulino e Cosson (2009), o letramento literário “como o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (p.67).
Os autores explicam também, em primeiro lugar, que o letramento literário será sempre um processo permanente de transformação, isto é, uma ação continuada. Isto se evidenciou claramente nos encontros, pois a cada semana, as meninas evoluíam e transformavam informações de suas vivências com as histórias contadas. E em segundo, que este será uma aprendizagem para toda a vida, não termina na escola e que se renova a cada leitura; ou seja, revelando o caráter interativo da leitura, isto é, a cada nova leitura uma nova apropriação de conhecimentos, pois inferimos à leitura nossos conhecimentos de mundo.
Ao construir conhecemos de mundo e socializá-los nos encontros, as meninas tem a oportunidade de conhecer diferentes possibilidades de leitura, de ser o outro, de reorganizar o mundo. Paulino e Cosson (2009) enfatizam que essas experiências se passam

Tanto no plano individual quanto no social, pois o (re)conhecimento do outro e o movimento de desconstrução/construção do mundo contribuem para compor, convalidar, negociar, desafiar e transformar padrões culturais, comportamentos e identidades à medida que nos levam a viver muitas possibilidades de experiência que só a liberdade de um mundo de palavras pode oferecer (PAULINO e CASSON, 2009, p.70).

E assim, no meio dessas palavras e histórias, as crianças desfrutaram do prazer de recontar e recriar as histórias narradas conforme suas imaginações, operando com liberdade o uso da linguagem, dessa forma, a literatura lhes proporcionou uma forma de dar sentido ao mundo e a elas mesmas. È por isso, que os autores elegem o contato com a literatura como fundamental para o desenvolvimento humano e concebem o letramento literário “como o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO e CASSON, 2009, p.70).
No entanto, os autores explicam que nas escolas ainda há pouco uso desse letramento literário, que estas não valorizam efetivamente a leitura literária, a escrita literária, e que, os poucos espaços de leitura nas escolas são realizados no intuito de responder apenas questões de interpretação, as quais não contemplam a leitura individual de cada aluno. Para concretizar o letramento literário na escola, os autores explicam ser necessário o contato direto e constante com o texto literário.
Paulino e Cosson (2009) explicam que existem muitos materiais para serem explorados na escola além do texto literário, enfatizam outras manifestações como os textos de tradições orais, dos meios de comunicação em massa, de eventos artísticos, “mostrando como a literatura participa deles e eles participam da literatura” (p.75)
No intuito de se “apropriar’ do que a literatura oferece muito mais do que leitura de narrativas, utilizou-se nos encontros a contação de histórias.

Contação de história: uma estratégia
Para de fato conseguir-se o gosto pela leitura das crianças, e prender suas atenções para a narrativa de cada encontro, utilizou-se estratégias de leitura que as faziam participar ativamente das histórias. Solé (1998) considera estratégias de compreensão leitora como “procedimentos de caráter elevado, que envolvem a presença de objetivos a serem realizados, o planejamento das ações que se desencadeiam para atingi-los, assim como sua avaliação e possível mudança” (SOLÉ, 1998, p.69/70).
Tendo-se como objetivos o incentivo de interesse e hábito de leitura, e a socialização destas meninas, em cada encontro utilizou-se estratégias/dinâmicas para concentrá-las no momento da narrativa e participarem dos diálogos. Conforme Rangel (1990) explica que as estratégias/dinâmicas
são utilizadas para auxiliar e para fixar a aprendizagem, para introduzir elementos que estimulam o trabalho de ler e aprender, para incentivar habilidades necessárias ao estudo (observação, organização e expressão de ideias, etc.), para diversificar atividades em todos os graus de ensino e em qualquer disciplina (RANGEL, 1990, P.15).
Dentre as dinâmicas sugeridas por Rangel (1990), utilizou-se algumas:
· Pediu-se que cada menina falasse uma informação da história, sem que uma repetisse de outra, ou seja, uma informação diferente das apresentadas; com o objetivo de reconta a história. Ao final, em cada semana, também uma menina recontava toda a história sozinha.
· Solicitou-se que uma menina completasse a frase “o que o texto me diz...” e a outras que completassem a frase “o que eu digo as minhas colegas...”. No intuito de socializar a narrativa com as vivências das meninas.
· Pediu-se que as meninas falassem o que era correto ou não no comportamento de personagens, como o saci-pererê que escondia objetos das pessoas, com o objetivo que não deve-se esconder os pertences das colegas.
· Pergunte diferente – as meninas faziam perguntas sobre o texto, com o objetivo de aprender novas palavras com o mesmo significado.
· Pediu-se que, ao pintarem o desenho referente a história, as meninas elegessem uma cor para representar aquele personagem e explicar o porque da escolha.
Contudo, para que essas dinâmicas fossem utilizadas ao longo dos encontros, a ‘estratégia’ principal utilizada foi a contação de história. Isto porque a contação utiliza-se de vários recursos que tocam os sentidos das crianças, muito além do que a simples leitura de narrativas.
Segundo Weschenfelder (2005) a ação de ouvir e contar histórias estimula o gosto pela leitura das crianças, assim como o desenvolvimento da expressão e a própria escritura. Enfatiza ainda que “os atos de contar histórias faz parte da índole humana tanto quanto o ato de respirar, comer, dormir” (p.113).
Paulino e Cosson (2009) já mencionavam existir diversos materiais para o ensino de leitura além do texto em si, entre eles a literatura oral, vista como a primeira manifestação da ficcionalidade transmitida de boca em boca, segundo Weschenfelder (2005); é uma alternativa para o processo de ensino-aprendizagem da leitura/literatura, principalmente nesta fase de alfabetização e ao longo do ensino fundamental.
Para Vânia Dohme apud Weschenfelder (2005)

as histórias contadas propiciam aos ouvintes a atenção e raciocínio, o senso crítico, a imaginação, a criatividade, a afetividade e a transmissão de valores. Elementos como o uso da voz, da expressão facial, de elementos externos o tining (ritmos que se dá à narração) constituem condição básica para que a contação de histórias obtenha êxito (WESCHENFELDER, 2005, p.117).

Foi com a colaboração desses elementos descritos acima, que a contação de histórias nos encontros obteve seus objetivos, pois a utilização do ritmo de voz e das expressões faciais, prendiam a atenção total das meninas que se concentravam para compreender todos os detalhes da história para depois conversarem a respeito da mesma.
Entendendo-se que as meninas além de aprender a dançar, de serem escolarizadas, elas possuem um espaço para ser socializadas com/para o mundo. Essa socialização através do espaço interativo criado para os diálogos, elas foram construindo o conhecimento de mundo, que Kleiman (2002) considera tão importante para o processo de ensino-aprendizagem. Conhecimento este, que o próprio Freire (1983) explica ter sido crucial para o desenvolvimento de seu gosto pela leitura. Isto fica claro, quando Freire (1983) afirma que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (p. 12). O autor, ainda comenta que a alfabetização é a montagem da expressão oral em escrita.
A partir dessas experiências de contar/escutar histórias ficou explícito que as crianças com a oportunidade de ouvir “histórias –lidas ou contadas- têm mais facilidade para adquirir o gosto pelas múltiplas leituras e, por efeito, compreender o sentido íntimo da leitura da palavra e da leitura do mundo” (WESCHENFELDER, 2005, p.117) ativando-se assim, a “palavramundo” de Freire (1983, p.12). Este, afirma que é na alfabetização que se deveriam escutar as inquietações e reivindicações das crianças, para dessa forma dar-se significado a experiência existencial da criança e não apenas do professor. Entende-se ainda que as leituras da palavra e do mundo pressupõem a experiência das crianças de mudarem e estarem em contato com o mundo.
A contação das histórias ampliou o significado das histórias, pois explorou-se a leitura sensorial (Martins, 1986) das crianças através das entonações, pausas, gestos e olhares utilizados para dar vida a narrativa. De acordo com Bragatto Filho apud Weschenfelder (2005) este é um bom caminho para promover a leitura e sua ampla dimensão, ou seja, “a descoberta e atribuição de sentidos, carregando a leitura de significações. O leitor, entendendo o texto, procura se entender e busca também o entendimento do próprio mundo em que se situa” (WESCHENFELDER, 2005, p.117).
Segundo Weschenfelder (2005) as “histórias contadas movem emoções, provocam imagens, suscitam a reflexão e promovem um fluxo permanente entre o imaginário e o real, a ficção e a história” (p.122). Isto se evidenciou nos encontros, nos momentos em que as meninas recontavam a história, usando a imaginação para se introduzir ou na não na narrativa, tornando-se agentes da ação. Notou-se que a cada história ouvida, ofereceu-se a possibilidade de troca de experiências/vivências de forma lúdica, “transformando num jogo, o que, no fundo, constitui aprendizado, pois induz os ouvintes a encararem seus erros, a lidarem com a traição, o amor, os sofrimentos e as realizações” (WESCHENFELDER, 2005, p.121).

METODOLOGIA

Este trabalho caracteriza-se por uma pesquisa-ação, pois além de analisar-se a situação de ensino das meninas, foi proposto a elas uma mudança, a que teriam o gosto e hábito da leitura para além da sala de aula, e foi desenvolvido em encontros semanais. Nos quais foi contada uma história às crianças, em que se foi inferindo assuntos do cotidiano delas a essa leitura.
No ato da leitura deixa-se claro o objetivo de fazê-la, seja para conhecer uma letra ou para adquirir conhecimentos de mundo e linguísticos. Nos encontros as meninas sempre tiveram a oportunidade de re-contar a história para as colegas a partir dos desenhos/figuras que havia no livro. Como a maioria ainda não é alfabetizada, elas não liam e sim contavam o que entenderam. Este momento era rico em aprendizagem de compreensão do que elas escutavam e de inserção ao meio social, pois dispunham de um espaço para falar, perguntar, enfim; conforme Kleiman (2002) explica, foi um criado um espaço interativo de diálogos, e segundo a autora é nesse espaço que de fato ocorre a aprendizagem.
No primeiro encontro (19/04/2010) inicialmente fez-se uma apresentação já conversando sobre leitura. Perguntou-se se alguém já sabia ler, se elas tinham livros em casa, se os pais liam para elas. Percebeu-se que era uma turma bem ativa e perceptiva. Contou-se a história do O espantalho brincalhão, relacionado ao cotidiano das meninas, incentivando a importância de ajudar a colega, de emprestar os livros e cuidar deles, de serem educadas. Como nessa escola, além de aprenderem a dançar balé, possui este espaço de aprendizado, que valoriza além do conhecimento linguístico, também o aprendizado de mundo, de relações sociais.
Na segunda semana (10/05), leu-se para as meninas poesias para crianças referentes às letras, ou seja, sobre o alfabeto, as vogais, as consoantes. De uma forma mais agradável e não de “decoreba” lhes apresentou as vogais, tendo como referência os nomes delas, nomes de frutas, lugares, meios de transporte. Algumas meninas que já estão na escola ou creche foram ajudando as colegas menores. Ressalta-se que o grupo é constituído por meninas de 03 a 07 anos.
Em 17 de maio, contou-se a história de Como surgiram as estrelas, explorando-se essa história para o reforço da aprendizagem das vogais e consoantes. Nesta semana, a maioria das meninas já aprendeu a escrever seus nomes. Novamente as meninas tiveram o espaço de re-contar a história para as demais colegas, uma de 07 anos aproveitou para mostrar às colegas as letras do título do livro.
No encontro seguinte (24/05), desenvolveu-se a contação da lenda do Negrinho do pastoreio, conversando com as meninas sobre outras versões que elas conheciam; assim como, assuntos relacionados a bom/mau comportamento, a raças, a religiosidade presente nos desenhos do livro. Após, algumas meninas re-contaram a lenda explorando os desenhos da história, por último a atividade de pintura. Apesar de algumas quererem copiar as cores do livro outras pintavam conforme imaginavam ser os personagens, recriando-os.
No quinto encontro (02/06), conversou-se sobre a origem do Brasil, suas raças, culturas e o futebol, especialmente da copa que estava para iniciar. Após o relato de algumas meninas que jogavam futebol no final de semana, elas pintaram diferentes desenhos para formarem junto um grande painel sobre futebol e o Brasil. Além da atividade de pintar, também recortaram e colaram. Neste encontro, aproveitou-se para conversar sobre o trabalho em grupo, a união, a importância da colaboração de cada uma para formar um grande trabalho.
Em 14 de junho, no intuito de prepararmos a sala de aula para as comemorações das festas juninas, as meninas recortaram bandeirinhas, colaram nos cordões e enfeitaram a sala. Aproveitou-se para cantar cantigas de festa de junina, como cai cai balão e capelinha de melão.
Na semana seguinte (21/06), contou-se a lenda de São João, cantaram-se cantigas juninas e as meninas pintaram um desenho. Aproveitaram para relatar as festas de suas escolas, as brincadeiras, e também, outras versões da lenda.
No seguinte encontro (05/07), desenvolveu-se a contação da lenda do Saci-Pererê, dialogando com as meninas sobre o comportamento da personagem, de que não se deve esconder os objetos das colegas, não se pode assustar uma a outra, que os maus modos do personagem não lhe traziam nada de bom. Cantou-se a música atirei o pau no gato, sugerida pelo livro e também uma versão mais educativa na qual a letra diz que não se deve atirar o pau no gato.
No último encontro do semestre, contou-se às crianças a lenda do Bumba-meu-boi, conversando-se sobre o folclore brasileiro, as danças, músicas e festas. As meninas relataram de como gostaram dos encontros e estavam ansiosas pelo término das férias (que recém estava começando).
As atividades estão sintetizadas, conforme o quadro a seguir:
Quadro 1 – Cronograma encontros realizados e seus temas trabalhados durante o projeto.

Encontro
Livro
Atividades
19/04
O espantalho brincalhão
Contação da história; a re-contação da mesma pelas meninas (duas); pintura de um desenho.
10/05
Poesia para crianças - Letras
Leitura de poesias sobre o alfabeto, as vogais; reconhecimento das vogais dos nomes delas e pintura de desenhos;
17/05
Como surgiram as estrelas
Contação da história e reconhecimento das palavras do livro com os desenhos nele impressos.
24/05
Lenda do Negrinho do Pastoreio
Contação da história; a re-contação da mesma pelas meninas; pintura de um desenho.
02/06

Conversa sobre o descobrimento do Brasil, suas origens e o futebol na copa/2010; pintura de desenhos para a confecção de um painel sobre futebol.
14/06

Atividades de coordenação motora: recorte e colagem de bandeirinhas para enfeitar a sala de aula; cantigas juninas.
21/06
Lenda de São João
Conversa sobre a lenda de São João; cantigas juninas e pintura de um desenho.
05/07
Lenda do Saci-Pererê
Contação da história; a re-contação da mesma pelas meninas; pintura de um desenho.
12/07
Lenda do Bumba-meu-boi
Contação da história; a re-contação da mesma pelas meninas; pintura de um desenho.


RESULTADOS E DISCUSSÕES

As considerações expostas no corpo desta experiência que reúne investigação e a prática da extensão, ou seja, além da sala de aula da academia, permite apontar os resultados parciais que se apresenta a seguir.
Neste primeiro semestre de 2010, como uma primeira etapa do projeto, têm-se como resultados o interesse que as crianças mostraram pelas histórias contadas; pela interação social entre elas, de modo que uma aprendeu a respeitar e ajudar a outra nas atividades propostas após as narrações (pinturas, recortes, canto de músicas relativas as histórias) e, principalmente, o gosto que elas adquiriram em recontar a histórias entre elas, através das imagens do livro. Percebe-se também a aquisição do léxico, através do ensino do alfabeto a partir de palavras referentes à história.
Notou-se principalmente que através das contações de histórias, as crianças tiveram um espaço interativo para dialogar, socializar suas ideias e vivências, para recontar a histórias conforme suas imaginações. Isto deixou que claro que é possível através de estratégias de leitura, incentivar as crianças para a leitura de diversos gêneros textuais, que com a contação elas puderam conhecer o mundo da palavra e o mundo que as circunda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destaca-se a importância do diálogo permanente entre a coordenação da escola, da professora orientadora e a acadêmica colaboradora, principalmente no que se refere à diversidade das atividades e à política do voluntariado, que devem estar fortalecidas para o crescimento institucional.
Outro dado significativo que se revelou foi o interesse da coordenação da escola pela continuidade dos encontros. Além disso, há o fato de compreenderem que a aprendizagem e as vivências são patrimônio, que levamos para vida profissional e pessoal e que esta bagagem também é adquirida em situação de estágio, já que, por a escola ser uma instituição sem fins lucrativos, investe no voluntariado e em monitorias temporárias.
Por isso, pretende-se para o próximo semestre, explorar mais a contação de histórias, a fim de criar um ambiente ainda mais rico de leitura, ativando a imaginação de criação das meninas e instigando, cada vez mais, o gosto pela leitura.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 4.ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 9.ed. Campinas – São Paulo: Pontes, 2002.

______. Texto e leitor: aspectos cognitivos da linguagem. 5.ed. Campinas – SP: Pontes, 1997.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

RANGEL, Mary. Dinâmicas de leitura para sala de aula. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.

PALO, Maria José; OLIVEIRA, Maria rosa D. Literatura infantil: voz de criança. 3.ed. São Paulo: Ática, 2003.

PAULINO, Graça; COSSON, Rildo. Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da escola. In: RÖSING, Tânia M.K; ZILBERNAM, Regina (orgs.). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução de Cláudia Schiling. 6.ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

WESCHENFELDER, Eládio Vilmar. Contar histórias: vozes contagiantes da narrativa presencial. In: RETTENMAIR, Miguel e RÖSING, Tânia (orgs.). Questões de leitura para jovens. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005.

ZILBERMAN, Regina. A escola e a leitura de literatura. In: RÖSING, Tânia M.K; ZILBERNAM, Regina (orgs.). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.


[1] Autora - Acadêmica do Curso de Letras - Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) Santa Maria, RS - Brasil. E-mail: luana_iensen@yahoo.com.br
[2] Professora orientadora – Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) Santa Maria, RS - Brasil. E-mail:

Trabalho apresentado no InLetras - X Seminário Internacional em Letras 2010- Resultado do PROBIC/2010


CONCEPÇÕES DE LEITURA ENTRE LEITORES MULTIPLICADORES [1]

Célia Helena de P. Della Méa (UNIFRA)[2]
Marta Dinarte Schutz (UNIFRA)[3]
Luana Iensen Gonçalves (UNIFRA)[4]



RESUMO:
Com a presente pesquisa, tem-se por finalidade investigar as possíveis concepções de leitura que os alunos de Letras da UNIFRA (multiplicadores) possuem e analisar a relação dessas concepções com as experiências de leitura desses alunos. Mantém-se como pressuposto a ideia de que a leitura não é a simples decodificação de signos; é uma operação que requer a instituição de relações entre experiências e conhecimentos armazenados. A fim de atingirem-se os objetivos, utilizou-se a pesquisa ação como metodologia de trabalho. Como resultados, constataram-se concepções de leitura ora restritas a decodificação de signos, ora mais ampla, comportando percepções de elementos multimodais em diálogos. Ainda, é possível considerar que os resultados decorrem de vivências na Educação Básica.

Palavras-chave: leitura, leitores, ensino.



[1] Trabalho de Pesquisa _UNIFRA – PROBIC/2010
[2] Orientadora: Professora do curso de Letras do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria, RS, Brasil
[3] Autora: Graduanda do curso de Letras do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria, RS, Brasil
[4] Coautora: Graduanda do curso de Letras do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria, RS, Brasil

Trabalho apresentado no InLetras - X Seminário Internacional em Letras 2010

DO LATIM AO PORTUGUÊS: VARIAÇÕES E MUDANÇAS LINGUÍSTICAS[1]

Luana Iensen Gonçalves[2], Laurindo Dalpian[3]


RESUMO: O presente estudo, de caráter bibliográfico, percorre diacronicamente a evolução do latim vulgar até a atual língua portuguesa. É um estudo de ordem linguística, voltado ao campo da filologia. O latim clássico e o latim vulgar eram variantes de uma mesma língua. A primeira, da escrita, era da escola, da aristrocacia, da literatura. E a segunda, falada, de cunho popular, atendia principalmente às classes menos privilegiadas. Assim, durante séculos de conquistas territoriais, a língua latina modificou-se/adaptou-se sob a influência de substratos, superstratos e adstratos. O propósito maior deste trabalho é descrever a variação linguística do latim e do português e as mudanças ocorridas.

Palavras-chaves: latim vulgar; língua portuguesa; variação linguística; mudança linguística.


INTRODUÇÃO

A variação linguística do latim, no decorrer de todo o processo de romanização, era uma realidade presente em todas as regiões conquistadas do Império Romano, as quais, por sua vez, apresentavam características próprias, quer em função das épocas de colonização quer da mescla linguística havida com os mais diferentes povos. A atual língua portuguesa também apresenta uma grande variação, proveniente dos dialetos regionais, dos falares das diferentes camadas sociais, dos grupos étnicos e de muitos outros fatores. A presente pesquisa, além de analisar a variação do latim e do português, entra no campo das mudanças, ocorridas durante a evolução verificada do latim ao português (diacronia). Dessa forma, essa incursão constitui-se em uma tentativa para recuperar a história da língua. Muitas variantes da língua latina migraram para as línguas românicas, submetidas a um contínuo e lento processo de mudança. Dentro da realidade linguística das províncias romanas, caracterizadas pelas mesclas linguísticas, a comunidade foi aceitando as inovações, em função do prestígio inerente à língua do dominador, em modo particular, e ao uso incessante, integrando-as à fala comum.
Justifica-se a presente pesquisa, por apresentar dados históricos da língua portuguesa, desde seu passado latino, com o suceder-se de mudanças ao longo do tempo. Percebendo-se que a realidade linguística, de qualquer comunidade de fala, se transforma continuamente teve-se como objetivo principal descrever a variação linguística do latim e do português e as mudanças ocorridas.
Este estudo é fruto de uma pesquisa bibliográfica, em que foram analisados, em um primeiro momento, livros teóricos acerca da língua latina e da portuguesa, a respeito de suas variações e mudanças. A coleta das informações apoiou-se na concepção teórica da dialetologia e da sociolinguística, em que a língua é vista como um objeto heterogêneo, relacionando-se à história social e cultural dos falantes. Tomando o latim vulgar como ponto de partida, verificou-se a evolução da língua portuguesa através do estudo de suas fases principais. O entrelaçamento de diacronia e sincronia mostra um longo processo de formação. As influências oriundas dos mais diferentes povos explicam-se pelas mesclas que aconteceram ao longo do tempo e que perduraram pelos séculos.



FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Saussure (2006), a fim de salientar o estudo das variações linguísticas, delineou dois eixos, um horizontal e outro vertical. Representou o primeiro como eixo das simultaneidades, isto é, a sincronia, e o segundo, como eixo das sucessividades, isto é, a diacronia.
A sincronia, ou eixo das simultaneidades, representa as relações entre fenômenos existentes, dos quais se exclui toda a intervenção do tempo. Koch e Silva apontam que Saussure considerou a língua como um conjunto de fatos estáveis, “estudados como elementos de um sistema que funciona num determinado momento do tempo”. O eixo das sucessividades, ou diacronia, representa os fenômenos que se modificaram ou se substituíram numa sucessão no tempo; “tais fenômenos não são isolados, mas acarretam modificações no sistema, determinando a passagem de um estado de língua a outro” (2002, p. 9).
A fim de compreender melhor estas mudanças, partiu-se de dados dialetológicos e sociolinguísticos, os quais delineiam a língua como heterogênea. Saussure (2006) explica que a língua é um conjunto de signos que não pode ser modificada por quem fala e segue as leis estabelecidas pela comunidade. Segundo Bechara (2006) é uma unidade linguística ideal. O dialeto, por sua vez, de acordo com Coutinho (1956), é a modificação regional de uma língua. Desta forma, Cardoso e Ferreira (1994) explicam que os falantes de uma mesma língua, mas de diferentes regiões, possuem características linguísticas variadas e “se pertencem a uma mesma região também não falam da mesma maneira, tendo em vista os diferentes estratos sociais e as circunstâncias diversas da comunicação” (p. 12). Assim é possível compreender porque existiram tantos dialetos no processo de romanização.
Entende-se, dessa forma, a dialetologia e a sociolinguística como estudos das falas, tanto de suas variedades regionais como sociais. A dialetologia tem um maior interesse pelos dialetos regionais, a sociolinguística estuda mais os dialetos urbanos. A primeira se identifica mais com a linguística diatópica, horizontal, e a segunda, com a linguística diastrática, vertical. Neste trabalho foram vistos, ao longo das fases da língua portuguesa, os dialetos regionais e os falares urbanos, uma vez que o latim vulgar tinha inúmeras variações.

A variação e a mudança linguística

De acordo com Bagno (2002), a variação da língua portuguesa pode ser observada tanto na escrita quanto na oralidade, já que ela não é homogênea.
Tarallo (1997) diz que a variação linguística revela as diferentes maneiras de dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, com o mesmo valor de verdade, e esta pode acontecer em diversos níveis, conforme a escolarização do falante, sua classe social, o espaço geográfico ao qual pertence etc.. Um exemplo na língua portuguesa é a marcação do plural no sintagma nominal. Temos a variável s e as variantes s e a ausência do s: As meninas bonitas - As meninas bonita - As menina bonita.
Deste modo, segundo Tarallo (1997), pode-se dividi-las em variantes padrão e não-padrão. A variante padrão é conservadora e tem prestígio sociolinguístico na comunidade. A variante inovadora é considerada normalmente não-padrão e estigmatizada pela comunidade. A mudança linguística pode ocorrer nos diversos níveis linguísticos (fonético-fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático ou lexical). Entende-se, então, “o fato de que as línguas humanas mudam com o passar do tempo” (FARACO, 1991, p. 9), ou seja, a estrutura da língua se altera no tempo, continuamente. Mas, para o comum dos indivíduos, é difícil perceber essa mudança, pelo fato de que ela ocorre lentamente. Ao mesmo tempo, as pessoas são peças importantes nessa evolução, pelo fato de serem falantes e utilizarem a língua constantemente. Contudo, em “linguística histórica nem toda variação implica mudança, mas toda mudança pressupõe variação” (FARACO, 1991, p. 13).
A mudança linguística pode ser percebida ao comparar textos antigos com os atuais, ou falantes de gerações, classes econômicas ou culturas diferentes. Essa comparação revela que a língua está constantemente passando por transformações, ou seja, “que estruturas e palavras que existiam antes não ocorrem mais ou estão deixando de ocorrer; ou, então, ocorrem modificadas em sua forma, função e/ou significado” (FARACO, 1991, p. 10). O autor aponta ainda algumas características da mudança linguística: contínua, lenta e gradual, e relativamente regular. E relata que, para uma variação linguística tornar-se de fato uma mudança, ela deve ser aceita na oralidade por toda comunidade de falantes e “passar” para a escrita.
O que a história das línguas revela é que esse “jogo” de variação e mudança esteve presente desde os primórdios da humanidade. Isso porque, quando as diferentes civilizações se encontravam, em diversas situações, necessitava-se da comunicação. Assim uma língua misturava-se a outra, mesclava-se, iniciando o processo de variação linguística e consequentemente as mudanças começaram a surgir nas línguas. Nesse jogo, pode-se afirmar que

Na realidade, o latim vulgar é o que corresponde essencialmente ao nosso conceito de língua viva. O latim clássico só era língua viva na medida em que recebia influência do latim vulgar e se tornava, com isso, mais maleável e mesmo um tanto dinâmico (CÂMARA JUNIOR, 1975, p. 22).

Entende-se, dessa forma, porque é possível afirmar que o latim continua vivo entre as línguas românicas, graças às variações e mudanças ocorridas. Dessa forma, como exemplo de variação, tem-se o dialeto (modificação regional de uma língua), o idioleto (variação particular a certa pessoa), o etnoleto (variação para um grupo étnico), os registros de língua falada e escrita, a linguagem padrão e não padrão. Variações como dialetos, idioletos e socioletos podem ser distinguidos não apenas por seus vocabulários, mas também por diferenças na gramática, na fonologia e na versificação. Além disso, afirma-se que a variação pode aparecer em todos os níveis de funcionamento da linguagem. Para uma explicação mais real, toma-se o estado do Rio Grande do Sul como exemplo. Nesse estado tem-se o dialeto conhecido como gaúcho, ou seja, o português brasileiro com o “sotaque” dos habitantes sulinos. “Dentro” desse dialeto existem muitos socioletos, que são as variações linguísticas de grupos sociais diferentes (a fala de professores, comerciantes, estudantes, não escolarizados etc.).
Dessa forma, insere-se no conceito de variação linguística a noção de mescla linguística, que engloba os fenômenos do contato e da mescla, dos homens e sua cultura, suas línguas, a sintaxe, a fonologia e outros. É a partir do convívio social, das maneiras de falar diferentes que a mescla se justifica como um veículo efetivo de comunicação entre os falantes da comunidade. Tarallo e Alkmin (1987) distinguem a mescla intracomunidade (variantes convivendo em uma mesma comunidade de fala, em que somente uma língua é falada, por exemplo, o português) da mescla intercomunidades (línguas distintas coexistindo e se misturando em uma comunidade, por exemplo, a convivência do alemão, italiano e polonês na região sul do Brasil).
Assim, pode-se dizer que ocorreu uma mescla “dos latins”, somando-se a variações históricas, sociais, políticas e geográficas, até chegar-se ao português atual. E estas transformações demoraram muito tempo para se concretizarem, justamente pelas características da mudança, descritas por Faraco (1991).

Variações do latim e do português

A língua portuguesa provém do latim, que faz parte, por sua vez, da grande família das línguas indo-europeias, representada hoje em todos os continentes. No início, era o simples falar de um povo de cultura rústica; depois, com o tempo, a língua latina passou a desempenhar um papel importantíssimo na história ocidental. Conforme afirma Coutinho (1962), o “português é o próprio latim modificado” (p. 51); por isso, muitos estudiosos consideram errado afirmar que o latim é uma língua morta.
O latim é uma antiga língua indo-europeia do ramo itálico, originalmente falada no Lácio (Latium), região da Itália Central. Foi amplamente difundida, especialmente na Europa. Através da Igreja, tornou-se a língua dos acadêmicos e filósofos europeus medievais.
Com o trabalho do método histórico comparativo, estudiosos compararam línguas como o latim com raízes vocabulares diferentes, existentes na Índia, na Pérsia, na Grécia e em muitas outras regiões; e formularam “a hipótese da existência de uma língua primitiva que teria gerado esses idiomas” (CARDOSO, 2006, p. 6). A essa língua-mãe denominou-se indo-europeu. A partir da descoberta dessa língua mãe é que foi possível o estudo detalhado das origens de cada grupo de línguas. Assim, do latim foram desvendadas as origens das línguas românicas, pois as semelhanças que essas possuem entre si provêm do latim, ou melhor, elas são a continuação do latim. Percebe-se que durante um longo período de tempo em que o latim foi utilizado como língua viva, sofreu ele muitas e profundas transformações. Por isso, tem-se o costume de caracterizá-lo conforme a época e as circunstâncias em que foi usado.
Com a latinização, que foi o processo de incorporação ao Império Romano de novos territórios, que passaram a chamar-se províncias, ocorreu a difusão política, paralela à linguística. O latim tinha o prestígio de língua oficial. De acordo com Ilari (1999), “as línguas com que o latim entrou em contato, por efeito das conquistas, pertenciam a diferentes famílias linguísticas, e eram bastante diferentes entre si” (p. 48). Desta forma, entre os fatores que influenciaram na diferenciação do latim, destacam-se o próprio processo de romanização, a diversidade de substratos (as marcas linguísticas dos povos vencidos, incorporadas ao latim), as eras cronológicas (teoria cronológica de Gröber: cada época de ocupação apresentou um latim diferente) e os superstratos (línguas vencidas de povos vencedores), representados pelas línguas dos bárbaros que destruíram o Império Romano.
Para a concretização da romanização de inúmeras populações nativas, concorreram diferentes fatores, dado que o latim foi levado pelos legionários, colonos, comerciantes e funcionários públicos romanos, impondo-se pela força das próprias circunstâncias políticas e econômicas. A cada província conquistada os romanos impunham suas regras, leis e o latim como língua oficial.
Assim, o latim vulgar (falado pelos soldados, comerciantes etc.) sofreu transformações a partir da mescla linguística, na convivência de diferentes variantes linguísticas em um mesmo espaço, por força dos diversos substratos e, posteriormente, dos superstratos. Disso tudo, mais tarde, surgiram as línguas românicas. O termo românia, derivado de romanus, foi usado pelos povos romanizados para se distinguirem dos bárbaros. Ilari (1999, p. 50) aponta que

sobre romanus formou-se o advérbio romanice, ‘à maneira romana’, ‘segundo o costume romano’, e a expressão romanice loqui se fixou para indicar as falas vulgares de origem latina. (...) Do advérbio romanice, derivou o substantivo romance, que na origem se aplicava a qualquer composição escrita em uma das línguas vulgares.

Após as ocupações bárbaras, outras foram acontecendo durante séculos. De acordo com Cunha & Cintra (2008), com a ocupação árabe cresceram, na Península, as artes e as ciências, tendo grande incremento a agricultura, o comércio e a indústria. Ao longo do domínio árabe acentuaram-se as características distintivas dos romances peninsulares. O galego-português constituiu-se como uma unidade linguística única até meados do século XIV, na região que compreendia a Galiza e a faixa entre o Douro e o Minho. Acredita-se que o galego-português teria contornos definidos desde o século VI, “mas é só a partir do século IX que podemos atestar sua existência através de palavras que se colhem em textos de latim bárbaro” (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 18). Este é o que conhecemos como português primitivo.
Segundo Cunha e Cintra (2008), pode-se distinguir algumas etapas evolutivas do latim ao português atual: o latim lusitânico; o romance lusitânico; o português proto-histórico; o português arcaico e o português moderno.
A fase pré-histórica vai do século III a.C. ao século IX d.C. Nessa fase, incluem-se o latim lusitânico e o romance lusitânico.
O latim lusitânico representa a língua falada na Lusitânia, desde a implantação do latim pelos romanos até o século V d.C., quando se deu a invasão dos povos gremânicos. Nesse período espalhou-se por todos os territórios romanizados o latim vulgar falado pelos militares, comerciantes, agricultores e outros, e a cada conquista romana inseriram-se ao latim vulgar as influências dos povos conquistados.
Coutinho (1962) diz que no início existia simplesmente o latim. Mas, com o decorrer do tempo, este passou a apresentar dois aspectos distintos: o clássico, a língua escrita, com apuro do vocabulário, correção gramatical, elegância do estilo, e o vulgar, a língua falada pelas classes inferiores. Basseto (2001) explica que, além do termo vulgar, esse latim era denominado de sermo plebeius ou rusticus, peregrinus, castrensis, militaris.
O processo de romanização/latinização durou diversos séculos e, nesse tempo, os romanos utilizaram diferentes meios para impor o latim. A ocupação territorial acontecia geralmente graças aos exércitos. Os soldados, de início, eram apenas cidadãos romanos, mas, com o crescimento das invasões, foram sendo recrutados provincianos, homens incultos e romanizados. Com este contigente de homens que falavam o latim em contato direto e constante com as populações que invadiam, o latim pôde proliferar rapidamente, recebendo influências orais das línguas dos povos conquistados. Iniciou, assim, um processo de profunda dialetação do latim vulgar.
Contribuiu também para essa proliferação a organização da administração romana. Com a expansão territorial, organizavam-se as províncias, as quais eram governadas por cônsules que deveriam, de acordo com Basseto (2001), manter-se fiéis a Roma, promovendo sua defesa interna e externa, coletando impostos, aplicando as leis e ministrando os serviços de atendimento jurídico. Para chegar a cargos administrativos as pessoas “comuns” aprendiam o latim, mas, com o tempo, o latim culto dos administradores foi se diluindo com o latim falado, pois a língua é o veículo de comunicação entre a elite e o povo, além de estar em todos os documentos.
A administração romana investiu em obras públicas de todos os tipos, garantindo sua expansão e o sucesso da romanização, contribuindo também para a fixação do latim. Entre as obras destacam-se: as estradas, que serviam como acesso rápido entre as regiões; o abatecimento de água, atráves de aquedutos, benefício público que granjeou a simpatia dos aborígenes para com os romanos; os teatros; as escolas; os templos; os monumentos; as bibliotecas e muitas outras obras. O fato é que a cultura romana foi sendo assimilada e, com ela, a língua. Além disso, não se pode esquecer o comércio, que chegava às mais remotas regiões, mesmo às não pertencentes ao Império Romano.
A classe falante do latim compreendia “a imensa multidão das pessoas incultas que eram de todo indiferentes às criações do espírito, que não tinham preocupações artísticas, que encaravam a vida pelo lado prático, objetivamente” (Coutinho, 1962, p. 33). Pertenciam a essa classe os soldados, os artíficies, os marinheiros, os agricultores, os barbeiros, os sapateiros, os artistas de circo, enfim, os homens livres e escravos que andavam pelas ruas. Era a soma das camadas sociais humildes e o latim acabou sendo falado por todas as populações que foram sendo submetidas ao Império Romano. Ao lastro primitivo foram se sobrepondo elementos diversos, dialetais ou de outra procedência. Tinham, porém, em si mesmos, o germe da diferenciação, que foi se acentuando com o passar do tempo.
Com estas transformações do latim, em cada província, resultaram os diferentes romances e, a seguir, as línguas e os dialetos românicos.
É possível verificar que o latim vulgar teve suas próprias características, na oralidade, referentes ao vocabulário, fonética, morfologia e sintaxe. O vocabulário, segundo Coutinho (1962), priorizava “palavras compostas, derivadas ou expressões perifrásticas: accu’iste (iste), depost (post), fortimente (fortiter), ovicula (ovis), entre outras[4]. Tinha vocábulos característicos: comparare (comprar), viaticum (viagem), parentes (parentes), paganus (pagão) E o emprego de termos que representam ideias, expressos diferentemente do latim literário: caballus (equus), apprendere (discere), jocus (ludus), casa (domus), bellus (pulcher).
Quanto à fonética o latim vulgar reduzia ditongos e hiatos a simples vogais: orum (aurum), preda (praeda); transformava fonemas: justicia (iustitia), paor (pauor), rius (riuus); ignorava sons finais: es (est), dece (decem), pos (post); evitava vocábulos proparoxítonos: masclus (masculus), domnus (dominus). O h do latim clássico foi desaparecendo: Omo (homo), abere (habere), eres (heres).
Na morfologia, destaca-se a redução das cinco declinações do latim clássico a três no latim vulgar. Segundo Coutinho (1962), havia confusões entre a quinta declinação e a primeira e entre a quarta e a segunda. Também houve a redução dos casos. Os nomes neutros tornaram-se masculinos, na forma do singular, e femininos, na forma do plural.
Segundo Lopes[5], a sintaxe do latim vulgar preferia a ordem direta, a regência diferente de alguns verbos, maior emprego das preposições ao invés dos casos, construções mais analíticas. Basseto (2001), ainda, revela que o latim vulgar tornou-se uma língua mais analítica e concreta.
Quanto ao latim escrito, impunha-se o padrão culto, privilégio apenas da elite. Conhecido por latim clássico, foi a língua das mais importantes obras da prosa e poesia latinas: as obras de Virgílio, Horácio, Cícero, Tito Lívio, entre outros. Segundo Cardoso (2006), é uma língua cultivada, artística, bem diferente da língua falada.

O romance lusitânico, por sua vez, representa a língua falada na Lusitânia, do século V d.C. ao século IX d.C. Dele também não se tem nenhum documento escrito. Seu início é marcado com a invasão dos povos germânicos. Apesar de passarem ao status de dominadores, política e economicamente, por não possuírem cultura consistente adotaram o latim como língua oficial e, aos poucos, suas línguas foram sendo abandonanadas. Estas passaram a constituírem-se como superstratos, ou seja, línguas vencidas, apesar dos povos vencedores. É possivel observar, ainda, que, com a queda de Roma, manteve-se em relativa estabilidade o saber linguístico, ou seja, houve um período de certa resistência à mudança, uma vez que os habitantes vencidos (romanizados) tinham pleno domínio da língua. Basseto (2001) diz que que a permanência do latim aconteceu porque, nesta época, eram fatores determinantes o prestígio cultural e o desenvolvimento de uma língua para manter-se à frente de outra.
Observa-se, também, que a partir das conquistas bárbaras, a homogeneidade das províncias romanas foi-se dissociando e formaram-se estados independentes e isolados uns dos outros. A partir de então, o latim foi perdendo sua “majestade”, abrindo espaço paras os dialetos que acompanhavam essas novas províncias.
Dessa forma, cada uma das língua românicas seguiu caminhos diferentes, juntando às características locais as que recebeu de outros povos. Por isso, Coutinho (1962) considera a fase que inicia no século V como uma fase de transição, em que ocorreu uma grande diferenciação do latim, com a promoção de múltiplos falares, e resultou no surgimento da escrita das línguas românicas.
Antes da escrita, a maioria dos autores aceita uma fase intermediária para o português: o português proto-histórico. Trata-se de uma língua apenas falada, do século IX até os fins do século XII, da qual podem-se vislumbrar alguns vestígios em textos do latim bárbaro, escrito por tabeliães. Isso significa que já existia uma língua portuguesa falada, mas não escrita.
A fase histórica vai do século XII ao século XXI. Essa fase tem como marco inicial os primeiros textos escritos em galego-português, as cantigas trovadorescas; por isso a denominação de histórica. Pode ser dividida em arcaica e moderna.
A fase arcaica (do século XII até a primeira metade do século XVI) marca o inicio da literatura portuguesa e é subdividida em duas fases: Trovadoresca (1189-1350), com o primeiro documento escrito, e a fase da Prosa Histórica (1350-1536).
Os primeiros documentos em galego-português datam do século XIII. O primeiro texto literário em língua portuguesa de que se tem registro é a cantiga da Ribeirinha. A cantiga foi composta provavelmente em 1189 ou 1198, por Paio Soares de Taveirós, e recebeu esse nome por ter sido dedicada à Dona Maria Pais Ribeiro, amante de Dom Sancho I, apelidada de Ribeirinha, marcando, assim, o início da fase Trovadoresca. Na fase da Prosa Histórica, há um predominio de textos históricos, de escritores como Fernão Lopes, Gil Vicente e outros.
A fase Moderna vai de 1536 (publicação da primeira gramática da língua portguesa, de Fernão de Oliveira) até os dias de hoje. A partir dos descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI, os portugueses ampliaram o império de sua língua, que foi levada para os territórios por eles conquistados na África, na América, Ásia e na Oceania. Entende-se assim, que foi com a dialetação do latim vulgar que se originaram muitas palavras na língua portuguesa.
Hoje, o português é a língua oficial de oito países: Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Falado em todo o mundo, o português apresenta uma riqueza de variações. Por sua grande extensão territorial, o Brasil é um verdadeiro “balaio” de variações linguísticas.
O léxico brasileiro é resultado de um verdadeiro cruzamento idiomático. Além das origens no latim vulgar, mais de cinquenta línguas legaram palavras à língua portuguesa. De acordo com Perissé (2007), a influência mais forte vem das famílias grega e latina, introduzidas nas línguas dos colonizadores portugueses e dos imigrantes. Existem também outras influências, do tupi-guarani, das línguas africanas e de muitas outras.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procurou-se ver alguns conceitos de variação e mudança linguística para, então, compreender como essas aconteceram ao longo da história da língua portuguesa. Foi possível comparar o latim a uma semente e que dela germinaram diversas raízes, as línguas românicas. Dentre as diversas orientações teóricas utilizadas para compreender as transformações do latim vulgar, foram os estudos diacrônicos que possibilitaram a exploração das mudanças linguísticas ocorridas do latim para o português, especialmente a visão das fases da língua portuguesa.
A partir dos estudos teóricos, verificou-se que as variações linguísticas, tanto do latim quanto do português, aconteceram principalmente na oralidade, uma vez que o latim vulgar diluiu-se por todo Império Romano através da fala. Com os estudos diacrônicos, foram confrontadas as mais diferentes mudanças. Para chegar-se ao nível de uma mudança linguística, passou-se primeiro pela variação da fala, aceita na comunidade em que foi “criada”, onde tinha prestígio, para, finalmente, consagrar-se na escrita, bem mais tardia. Muitas palavras perderam-se ao longo da história, porque as variações ocorrem de forma mais rápida do que a mudança linguística e “mudam” de região para região. A difusão do latim provocou o surgimento de inúmeros dialetos, alguns dos quais foram constituídos como línguas.
Nesse contexto, Câmara Junior (1975, p. 23) diz que

O latim vulgar só se define como um contraste com a norma ideal do latim clássico. Não é uma unidade linguística em qualquer momento de sua história. Diversifica-se em dialetos sociais, e, diacronicamente, é uma continuidade de mudanças. É justo dizer que as línguas românicas provêm do latim vulgar, no sentido relativo de que resultaram de um latim dinâmico, essencialmente de língua orla, em processo de perene evolução. Elementos do latim clássico, que estão nas origens românicas, são os que se integram no processo evolutivo, fazendo-se ‘vulgares’.

Entende-se, dessa forma, a importância da oralidade para o processo de variação/mudança e, através desse processo evolutivo, o percurso da língua portuguesa ao longo do tempo, que continua indefinidamente. As transformações da língua podem ocorrer pelos mais diversos fatores: geográficos, sociais, culturais etc.. A língua é um instrumento humano, ou seja, vivo, e depende do ser humano para se concretizar e evoluir, uma vez que é heterogêneo, não estático e, por consequência, precisa modificar-se constantemente a fim de atender às necessidades de seus usuários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______; ALKMIN, Tânia. Falares crioulos: línguas em contato. São Paulo: Ática, 1987.

[1] Resultado de trabalho de pesquisa da disciplina de Filologia Românica I.
[2] Acadêmica do curso de Letras Português – Centro Universitário Franciscano. luana_iensen@yahoo.com.br
[3] Orientador: Professor Doutor de Língua Latina e Filologia Românica do Centro Universitário Franciscano. laurindodalpian@gmail.com
[4] Todos os exemplos das características do latim vulgar foram retirados de Coutinho (1962).
[5] Disponível em: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno10-14.html, acesso em 09/04/2010.

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